sábado, 12 de maio de 2007

EU LHE ENTREGO A MIRIAN! – Ou Sangue de Cristo Tem Poder!, ou Vá Matar o Cão, Ou Ainda, O Preto da Minha Vida!

- Billy, em buraco de cobra tatu caminha dentro?
- Vá matar o cão Velho Diu, sangue de Cristo tem poder!

Dentre as coisas mais podres da humanidade uma das que mais abomino é a discriminação. Seja de que tipo for, racial, social, religiosa, sexual, não importa, todas são execráveis. Hoje, numa fila de banco, ouvi uma colocação que me enojou. Um senhor escuro, foi direto ao caixa sem passar pela fila. A mulher que estava a minha frente comentou comigo: - Aquele preto deve ter muito dinheiro, nem pega fila! Não dei resposta, fiz que não ouvi, mas deu vontade de mandar ela tomar sorvete. No final das contas, observando a situação atentamente, percebi que o senhor já havia pegado a fila antes, mas teve necessidade de buscar um visto com o gerente e voltou para concluir seu atendimento. Não era justo que voltasse ao fim da fila. Fiquei com uma raiva imensa da mulher, saí de lá a julgá-la como se fosse a pessoa mais vil do mundo.

Depois, no carro, voltando para o trabalho, comecei a pensar sobre o assunto com outra ótica. Percebi que eu mesmo, numa infinidade de vezes, agi exatamente como aquela mulher. E que, no geral, todo mundo sempre tem uma atitude deste tipo, mesmo que, na essência, não seja um racista ou preconceituoso. Quantas vezes já fiz comentários do tipo: - Olha aquela menina!, ao perceber a passagem de um homosexual? Isto acontece até hoje. Procuro me policiar, evitar este tipo de coisa, afinal eu sei que não é isto que define o caráter e a nobreza de uma pessoa, mas faz parte da nossa cultura, está enraizado nas nossas cabeças e, às vezes, é inevitável. Sendo assim, como posso eu julgar aquela senhora se sou exatamente igual a ela? Gostaria de encontrá-la novamente para pedir-lhe desculpas. Estas situações são mais comuns no cotidiano do que se imagina. Não tem aquela história de D. Canô? Quando Gil aparecia na televisão ela falava: -Caetano, vem ver o preto que você gosta! Quero ver cabra macho o suficiente pra chamar D. Canô de racista.

Tudo isto me fez lembrar de Juvenal. Um dos meus melhores amigos, quase um irmão. Pessoa que, apesar da distância que nos separa, já que mora a 500km de Salvador e hoje nos vemos muito pouco, vive no meu coração e sei que o amor que lhe dedico é totalmente recíproco. Para falar de Juvenal, ou melhor, de Billy como é mais conhecido, preciso voltar um pouco no tempo. Nem tão pouco assim.

Quando cheguei em Santo Amaro, movido pelas intermináveis transferências de meu pai que era o que se chamava na época de Coletor, trocando em miúdos, chefe de agência da Receita Federal pelas cidades desta Bahia afora, conheci Juvenal. Ele já era funcionário da Receita, através de uma empresa terceirizada, e meu pai era o seu chefe. Eu tinha onze anos e ele já ia pela casa dos vinte e cinco, não sei precisar. Até hoje não sei a idade deste negão. Como diz minha mãe, nego quando pinta tem três vezes trinta. Sei que não mudou quase nada do dia que o conheci pra cá. Parece que o tempo não passou pra ele. Quando nos conhecemos foi aquilo que se chama de amor à primeira vista. Tanto eu, como Luciano, meu irmão dois anos mais velho, adoramos o cara. Ele também gostou muito da gente. Tanto é que logo fizemos amizade e começamos a sair juntos. Meu pai criticava. Dizia não entender como ele andava com dois moleques recém saídos do cueiro. Juvenal retrucava: -Seu Carôso, seus meninos são mais maduros do que o Sr. pensa! E assim começamos nossa amizade eterna que até hoje se estende, vinte e sete anos depois.

Lembro que dentre as muitas viagens que fizemos juntos, numa delas pra Lençóis na Chapada Diamantina, casualmente encontramos lá uma colega minha de escola. Logo percebi que minha amiga se engraçou por Billy. Ele não acreditou. À noite, numa seresta, eles dançaram muito e Billy foi levá-la pro hotel. Na volta comentou comigo: - Velho Diu, acho que sua amiga tá a fim de ver a coisa preta! O próprio negão, vinha com seu comentário racista.

Ainda em Santo Amaro, chegou pra trabalhar na Receita uma menina de Salvador, Mirian. Ela observava as brincadeiras imbecis que eu Luciano fazíamos com Billy. Tipo coisa de: - A culpa é da princesa Isabel, não fosse por ela você tava na senzala tomando chibatada! Billy ria feito uma criança, mas Mirian ficava indignada, e com razão. Sempre falava pra ele: - Esses meninos são racistas, não gostam de você, não sei como anda com eles! Ao mesmo tempo, ela tinha razão e estava enganada. Tinha razão quando nos detestava, estava enganada quando pensava que não gostávamos dele. Billy só contemporizava: -Mirian, os meninos são legais, é tudo brincadeira. -Brincadeira o quê Billy, não vê que no fundo é o que eles pensam! A verdade é que Mirian passou incólume pelas nossas vidas e somos amigos fraternos até então. Pra uma coisa Mirian foi preponderante. Até hoje, quando fazemos uma dessas brincadeiras com ele, Billy logo retruca: - Eu lhe entrego a Mirian!

O cara é uma figura. Hoje casado, com dois filhos adultos, Vinícius e Dirley, e sua esposa Vera, fazem parte da minha família. Sinto o maior orgulho de saber que meu pai, em tempos que o concurso público não era exigência imprescindível, foi o responsável pela sua efetivação na Receita, saindo da empresa terceirizada em que era contratado. Lá ele fez carreira e chegou ao topo. Hoje aposentado por motivos de saúde, vive bem e curte a vida como ninguém. Mora em Paulo Afonso, uma cidade maravilhosa, cheia de belezas naturais e não vejo a hora de visitá-lo.

Outro dia, faz uns dois meses, em plena terça-feira, cansado de um dia estafante de trabalho, estava em casa de pijama, afinal eram dez horas da noite. Tocou o interfone. Como o mesmo está quebrado, embora toque não faz a intercomunicação, abri a porta para ver quem era. Não deu pra reconhecer. Afinal, naquela escuridão, um negão daqueles não se sobressai. Só o reconheci quando ouvi: - Velho Diu, vá matar o cão! O prazer foi imensurável. Como amo este negão!

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