quinta-feira, 28 de agosto de 2008

MAIS UM PRESENTE - Corrigindo uma injustiça

Minha querida amiga Ana Casanova do blog Anavision, me presenteou com mais este mimo o Prêmio Dardos. Ele tem um significado especial e, se aceito, deve-se linkar a pessoa que o presenteou e oferecê-lo a mais quinze pessoas que na sua maneira de ver o mereçam. Quanto ao link, este já existe aqui há muito tempo. Afinal o Anavision é um dos meus blogs favoritos. O significado: "Reconhecer os valores que cada blogueiro mostra a cada dia, seu empenho por transmitir valores culturais, éticos, literários, pessoais, etc. Em suma, demonstra sua criatividade através do pensamento vivo que está e permanece intacto entre suas letras, entre suas palavras...".

Vou então oferecê-lo aos seguintes blogueiros que acredito estarem à altura de tais requisitos:

Jacinta Dantas
Regina Coeli
Denis Barbosa Cacique
Lorena
Mary
Tata
Nuvem
L. Neres
Danilo Moreira
Cackau Loureiro
Mundo Azul
Nanda Nascimento
Carol Barcelos
Éverton Vidal
Camila Tebet

Eu o daria à muitas outras pessoas. Desculpem aqueles que foram injustiçados mas eram apenas quinze. Por falar em injustiça, quero aproveitar para corrigir uma. Há algum tempo, ganhei o selo "Este blog é escrito com amor". Injustamente não o repassei para Ana, justo ela que coloca o mais profundo amor em suas palavras. Desculpa amiga. Nunca é tarde para corrigir nossos erros não é mesmo? Para você Ana Casanova.


ILHA DO PIRATA - O Nome de Júlia - III

Publicado em 14 de abril de 2007 no marcador textos




O primeiro CD da Timbalada. Capa de Ray Vianna em parceria com David Glat.


Depois daquela lavagem do Bomfim, a Timabalada alavancava seus hits e o primeiro disco ia muito bem. Agora já era a música “Beija Flor” (Zé Raimundo e Xexéu) que estava estourada nas rádios de todo o Brasil e o disco vendia feito água não tardando a receber o disco de ouro. O trabalho de Ray começava a aparecer pro país embora escondido por trás dos que realmente aparecem numa hora dessas; os que estão à frente do palco. Quase ninguém pega um disco pra o olhar o nome do sujeito que criou a capa. Poucos sabem que a grande identidade da Timbalada, a pintura dos corpos, foi criação dele. Naquele mesmo verão, houve um show histórico em Salvador, um show que emplacou um projeto, um espaço, e uma banda de uma só vez. Estamos falando do Pôr do Sol, da área verde do Hotel Othon Palace que até hoje é um espaço usado para grandes shows e da Timbalada, respectivamente. Nesta noite, sem a menor combinação, sem nenhum convite prévio, a não ser os que Brown fez do palco e de surpresa para os ilustres que estavam na platéia, subiram ao palco juntos nada menos que Caetano Veloso, Gilberto Gil, Léo Gandelman, Nando Reis, Jorge Benjor e Álvaro Pietro do Biquíni Cavadão. Foi um êxtase. Cenário de Ray, mais uma vez driblando os poucos recursos da produção. Teve um impasse durante os ensaios, relativo ao figurino. Já não havia mais grana pra nada, mas Brown e Cícero naturalmente, queriam que a banda se apresentasse de maneira digna. Aí, o saudoso Pintado do Bongô, o mestre de Brown, que Deus o tenha no mais iluminado lugar lá do céu, falou: - Pra mim não precisa figurino. Eu vou nu e Ray me pinta. Tava criada a marca registrada da Timbalada. Na hora do show, de improviso, Ray pintou o peito nu de Pintado com aquelas linhas que jamais saíram do corpo dos Timbaleiros. O próprio Brown pegou carona e pintou os braços e o rosto.

Com o passar dos anos nossa amizade foi se fortalecendo assim como a minha amizade com Guta e Bia, esposa e filha dele. Já estávamos em 97 e eu trabalhava na Perto da Selva. A produtora que estourou o Araketu e Ivete Sangalo, ainda na Banda Eva. Tive o prazer de participar de perto e prestar a minha humilde colaboração para tal. Foi justamente num dos ensaios do Araketu, naquela época ainda no estacionamento do antigo Banco Econômico na Av. Carlos Gomes, que conheci uma pessoa que ia mudar a minha vida para sempre, Cynthia. Para aumentar os meus ganhos, estava juntando dinheiro para comprar um carro já que a dureza da época do desemprego levou o que eu tinha, montei uma barraquinha dentro dos ensaios, com um colega de trabalho, Marcelo Marinho, onde vendia espetinhos de “gato”. Um dia, eu tava na barraca tomando uma roska* de Umbu, para refrescar um pouco o calor da churrasqueira que era escaldante, chegou Cristiane, a recepcionista da Perto da Selva, acompanhada de Cynthia, uma paraense que passava férias em Salvador, pedindo pra que eu guardasse as suas bolsas na barraca. Cynthia perguntou o que eu tomava. Quando eu falei, ela se surpreendeu: - O que é rosca? Quer experimentar? Perguntei. A danada pegou o meu copo e tomou todo de vez. Eu nem sonhava que aquela devoradora de roscas viria a ser a mãe de Júlia, minha linda filha, meu maior tesouro.


Guta, a Copilouca.



Um ano depois, quando Cynthia veio morar em Salvador e começamos a namorar, ela também foi aprofundando laços de amizade com aquela família. Várias vezes saímos juntos, fizemos viagens e farras. Compartilhamos muitos momentos bons, alguns nem tanto. Fomos passar juntos o carnaval de 99 em Olinda, na verdade nos hospedamos em Recife na casa do nosso amigo Josildo Sá, o Jô. Ray que estava preso por compromissos de trabalho em função do carnaval, só poderia ir no sábado e ficou para ir de avião. Eu, Cynthia e Guta fomos na sexta no meu carro que, aquela altura do campeonato, já havia comprado. Esta viagem, por sinal, merece um texto só pra ela, e um dia contarei por aqui. Valeu a Guta um apelido, que ela mesma se colocou, Copilouca.

Foi um carnaval inesquecível, divertido a valer. Conhecemos figuras impagáveis, como o primo de Jô, Mersinho. Brincamos pelas ruas de Olinda em meio àquele fervilhão cultural, aos bonecos, às ladeiras e becos da cidade. Tomamos banho de mar na Boa Viagem, assistimos a um show de Geraldo Azevedo no Recife Antigo, interrompido, pelo menos pra mim, por um mal-estar de Cynthia (entenda-se excesso de cerveja), que tive de levá-la pra casa de taxi, já que deixei meu carro com Ray e Jô e as respectivas Guta e Aninha, esposa de Jô na época. Enfim, uma viagem maravilhosa. Não sei se nesse carnaval, ou se poucos dias depois que voltamos, na quarta de cinzas, mas foi por esse período com certeza, que a Preta, como chamo Júlia, foi encomendada.

Quando Cynthia contou-me que tava grávida eu enlouqueci de felicidade. É verdade que estávamos num momento difícil da relação, prestes a desabar, mas a notícia veio como uma bomba explodir meu coração de alegria. Aí juntamos nossos trapos e resolvemos tentar a vida juntos pra criar nosso rebento. Não deu certo, mas ficou uma amizade verdadeira, leal e uma filha maravilhosa que é hoje a razão da nossa existência. Eu sempre sonhei em ser pai e sempre quis ter uma filha. Imediatamente eu falei: - Vai ser menina! Cynthia achava que era um menino e fizemos uma aposta. Se fosse menina eu daria o nome sem a interferência dela e vice-versa. Só que ela não cumpriu a aposta. Nenhum nome que eu sugeria era do seu agrado e isto já tava virando uma briga até que um dia oferecemos um jantar, preparado por mim é claro, pra Ray, Guta e Bia. Naquela noite a controvérsia do nome voltou à tona. Eu, Ray, Cynthia e Guta dando várias sugestões sem chegarmos a um consenso até que Bia, na época com 10 anos, falou: -Vai se chamar Júlia. Tava aí o nome da Burra Preta.

Bia, nesta foto aos 15 anos. A responsável pelo


nome de Júlia.














*Rosca: Na Bahia, o nome do drink que todo mundo chama de caipirinha, é diferenciado pelo tipo de bebida com que é feito. Caipirinha se feito com cachaça, Caipiríssima se feito com rum e caipirosca se feito com vodca. Normalmente a fruta usada é o limão. O nome rosca, é uma abreviação e o sabor, ou a fruta, é ao gosto do freguês.

sábado, 23 de agosto de 2008

PARABÉNS BRASIL - Volei Feminino, Maurrem Maggi e Cielo, o Brasil verde e amarelo!

Onde havia má lembrança
Uma luz no fim do túnel
Reascende a esperança
Onde o brilho é vaga-lume

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

ILHA DO PIRATA - A Foto Reveladora - II

Publicado em 12 de abril de 2007 na marcador textos

O Triozinho das Frutas. Lavagem do Bonfim de 1993

Quando você tá na pior é que descobre quem são os verdadeiros amigos. Por cima é tudo uma festa. Um monte de gente te rodeando, se dizendo amigo do peito e, muitas vezes até, querendo te ver pelas costas. Agora, quando se estar por baixo, só os amigos leais, aqueles que te amam de verdade, vêm ao seu socorro. Com Ray foi assim. Já tínhamos quase dois anos de convivência, que já tinha se expandido do âmbito profissional para o pessoal, quando, após uma série de problemas pessoais com Brown, fui sumariamente demitido da Timbalada. Não houve nenhum tipo de aviso, nada que me fizesse pensar que estaria por um fio. Foi pá bufo: -Você tá fora e pronto. O pior, é que ainda conciliava os dois trabalhos e continuava ensinando. Como a Timbalada vinha num processo ascendente e tava difícil de me dividir, tive de optar por um deles. Pesei os prós e os contras dos dois e, depois de uma conversa com Cícero que me garantiu estar solidificado lá dentro, e que tinha muitos planos futuros para mim, no início de outubro de 94, pedi demissão da escola. Cícero não teve culpa de nada, foi pego de surpresa tanto quanto eu. Enquanto Brown falava comigo, sentia que, assim como eu, o chão lhe faltava nos pés.

Passei uma perrengue danada em quase dois anos desempregado e a maioria dos meus “amigos” da época, virou as costas pra mim. Fui demitido no dia 28 de outubro, aniversário do meu grande amigo Zé Filho, que mais tarde viria a ser também meu compadre, já que batizei a sua primogênita Jade, morador de Serrinha interior da Bahia, onde morei quatro anos da minha infância. Após a notícia, fiquei tão desnorteado que não consegui sequer entrar mais na minha sala. Aquela altura, depois do terceiro disco já havíamos alugado uma casa no Bairro nobre da Pituba e montado um puta escritório. Tinha sala pra todo mundo, inclusive pra mim. Desci as escadas, entrei no carro e fui para casa. Juntei umas mudas de roupa e, sem avisar a ninguém peguei a estrada para ver meu amigo no seu aniversário. Naquele dia eu almocei na casa de Ray e recebi a notícia assim que voltei pro escritório. Era uma sexta-feira e não tinha falado com ele mais. Quando já estava 10km estrada adentro ele ligou no meu celular. Todo animado queria saber qual o programa da noite. Sentiu na minha voz o meu estado de espírito e perguntou o que era. Quando contei a ele, como tudo mundo, ficou abismado. Me disse que se eu desse meia volta para pegá-lo, viajaria comigo. Aquela atitude mostrou o caráter do cara que nestes tempos já conhecia bem. Peguei o primeiro retorno. Foi uma bengala salvadora sua companhia em tal viagem. Não sei como seria vencer sozinho os quase 200km que separam Salvador de Serrinha.

Foi um ato simples que me chamou atenção pra ele. Embora já simpatizasse muito com Ray ainda não tinha estreitado maiores relações. Na lavagem do Bonfim de 93, portanto pouco tempo depois de nos conhecermos, eu estava exausto de dias e dias e noites viradas, trabalhando nos preparativos para a saída da Timbalada. Naquela época ainda eram permitos trios elétricos seguindo o cortejo. Lembro que no dia do desfile, viramos de quarta pra quinta. Eram cinco horas da manhã quando, tomado pelo cansaço, adormeci no chão da varanda de D. Madalena, sem colchão, travesseiro e nada. Só o corpo estendido na cerâmica fria. Sonhava em sono profundo, quando às seis, Gilson, irmão de Brown, chutou levemente o meu pé: -Adriano, acorda cara, tá na hora de irmos preparar a saída. Acordei de sobressalto e fomos nós. Eu dirigindo a Kombi repleta de gente e instrumentos, não sei como coube tudo aquilo dentro dela. Quando o bloco saiu já passava das dez. Dobramos o Mercado Modelo por volta do meio-dia. Aí eu não estava mais aguentando o peso do corpo sobre as pernas e entrei na boléia do caminhãozinho que servia de trio, para esticá-las. Não sei quanto tempo fiquei, sei que não foi muito. Logo, logo, Ziriguidum, um colega de trabalho, chamou-me pelo rádio, algum pepino aguardava-me.

Por falar no caminhãozinho, foi um show o que Ray fez com ele. Com os poucos recursos que dispunhámos, transformou um mondrongo, num dos destaques daquele cortejo. Pena que meu compadre, embora mestre na manipulção dos softwares da sua área, Corel, Photoshop e 3D Stúdio, é um tanto avesso ao mundo informático e não mantém atualizado o seu site que, até hoje, está da forma como foi criado quando eu ainda trabalhava com ele, em 2001. Mas, uma visita por lá, deixará claro pra qualquer um o talento deste artista que vem pontuando a música baiana com a plástica do seu trabalho.(Vale salientar que ele tomou vergonha na cara e atualizou o seu site. Merece uma visita)

O cortejo seguiu Cidade Baixa adentro e o trio manobrou para voltar no Largo de Roma. Não sei precisar bem mas devia faltar 1km dos 8km que, aproximadamente, tem o trajeto. Despachados caminhão e equipamentos, músicos e nós da técnica, seguimos a pé até escadaria da Igreja do Bonfim. A noite já havia caído há tempos.

Aos pés da escadaria, depois da benção do Senhor do Bonfim, desfizemos o desfile, embarcamos os músicos e equipamentos no ônibus e caminhão que já esperavam por perto, com destino a seus lares e cases*. Fomos então pra casa de Ivana Souto, amiga de Brown, que veio a ser durante um bom tempo empresária da carreira solo dele mais tarde. Ela morava ali mesmo no Bonfim e em sua residência, nos esperava uma feijoada e muita cerveja gelada. Não consigo lembrar se Ray foi com a gente ou se mesmo, ficou até o fim do cortejo. Se bem o conheço, acho que deve ter picado a mula muito antes dali. Preferi não perguntar a ele, não tenho compromisso com as minúcias dos detalhes mas com a verdade dos fatos. Cabeça e bucho cheios, de álcool e feijão respectivamente, fui dormir na Kombi até as outras pessoas que retornariam comigo, se refestelarem na festa. Foi a única vez na vida que participei de uma lavagem do Bonfim. De lá pra cá, mesmo estando em Salvador, vou sempre pro lado oposto da cidade.

Dias depois, com um atraso significativo e depois de muita reclamação, já que como falei antes a maré não andava pra peixe, Ray foi no escritório receber o resto do pagamento pelo seu trabalho no trio. Reclamou bastante por ter sido um dos últimos a receber. É sempre assim, e nisso ele estava coberto de razão, os de casa vão sendo protelados em benefício dos estranhos, estes cortam o crédito primeiro. Acontece que os de casa também têm contas a pagar e, no caso dele, uma legião de operários que mais tarde vim a conhecer bem todos, esperavam também pelos seus pagamentos com suas contas a pagar, numa cadeia de dívidas e compromissos interminável.

Bolsos abastecidos, ânimos arrefecidos, Ray sacou do bolso um presente pra mim. Aquele gesto nunca vai sair da minha cabeça, marcou a minha vida. Era uma foto que, não tenho a mínima idéia de que momento, ele tirou enquanto eu estava na boléia do caminhãozinho. Minha expressão embora cansada estava muito bôa. Talvez ele não saiba o quanto aquele presente significou pra mim. Nada de valor material teria me tocado tanto. Até hoje não me perdôo por não tê-la mais comigo. Se perdeu nas minhas intermináveis mudanças de casa em casa por Salvador.

*Cases - Estojo onde se guardam instrumentos ou equipamentos. A pronúncia é algo como queises.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

ILHA DO PIRATA – Ray Vianna Na História - I

Publicado em 12 de abril de 2007 no marcador textos








Ray Vianna


Depois de iniciar minha carreira profissional como professor de matemática do 2º grau na Escola Tomaz de Aquino em Salvador, prematuramente é bem verdade, afinal tinha apenas 20 anos de idade, mas isto é outra história a se contar, fui convidado por um grande amigo, Cícero Menezes, para participar e trabalhar num projeto que ele tava produzindo para Carlinhos Brown, a TIMBALADA. Estávamos em 1992 e a Timbalada não passava de um embrião na cabeça e nos sonhos do iluminado Brown. Este eu já conhecia de outras épocas. Amigo e parceiro de meu irmão Edmundo Carôso, fui testemunha do nascimento de algumas canções dos dois e ainda tive o privilégio de vê-lo cantar, no quarto de Edmundo do cubículo que era seu apartamento no Edifício Barbosa Romeu, em Pitangueira de Brotas, algumas canções inéditas suas que, mais tarde, vieram a ser sucesso nacional. “Meia Lua Inteira” é uma delas.

O primeiro passo foi organizar os ensaios do candeal. Não aqueles que foram, há poucos anos atrás, o point do verão em Salvador, no Candyall Gueto Square, uma super casa de show com equipamentos de primeira geração, onde só tinha grã-fino, uma vez que a meia entrada custava R$ 40,00, mas os que eram realizados no meio da rua sem calçamento, cujo palco era a carroceria de um caminhão caindo aos pedaços, e o som, era uma velharia zoadenta do impagável Nicolau Rios. Tempos difíceis aqueles, o escritório era a sala de D. Madalena, mãe de Brown, equipado com um aparelho de fax que Carlinhos tinha trazido de uma de suas viagens como músico de outros artistas.

Enquanto os ensaios a cada domingo ficavam cada vez mais lotados, levando gente de todos os níveis socias a descer o Candeal Pequeno, a Timbalada emplacava nas rádios o sucesso "Canto Pro Mar" (Carlinhos Brown). Surgiu o convite pra gravar o primeiro disco e resolvemos montar um escritório de verdade. Alugamos uma salinha de 10m2 na Ladeira do Acupe em Brotas. O grupo de funcionários era composto por uma imensa equipe, eu e a secretária recém contratada. Cícero sempre passava por lá, mas como não tinha espaço, despachava comigo e seguia para o trabalho de campo.

Foi nessa salinha que vi Ray Vianna pela primeira vez. Coincidência do destino, Ray era, ou pelo menos imaginava que era, amigo de Edmundo. Este nutria por ele uma antipatia gratuita e não gostava do cara, porém Ray não sabia de nada. Ele foi lá receber o pagamento pelos serviços prestados como artista plástico para a Timbalada. Naquelo momento, ninguém imaginava que estava nascendo, uma amizade de vida, uma parceria profissional e o batizado de Júlia, que, como eu ainda nem sonhava em conhecer Cynthia, não fazia parte dos meus planos.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

RETIRO TUDO QUE DISSE - Entendendo a ótica de Caetano

Publicado em 21 de abril de 2007 no marcador Textos

Sampa

(Caetano Veloso)

Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e Av. São João
É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi
Da dura poesia concreta de tuas esquinas
Da deselegância discreta de tuas meninas
Ainda não havia para mim Rita Lee
A tua mais completa tradução
Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e avenida São João

Quando eu te encarei frente a frente e não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes quando não somos mutantes
E foste um difícil começo
Afasto o que não conheço
E quem vem de outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso

Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas
Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaços
Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva
Pan-Américas de Áfricas utópicas, túmulo do samba
Mas possível novo quilombo de Zumbi
E os Novos Baianos passeiam na tua garoa
E novos baianos te podem curtir numa boa

Mário Quintana já dizia: - Não há porque interpretar um poema. O poema já é uma interpretação. Já Antonio Brasileiro, em prefácio para o livro não publicado, Cinema Secreto, de Edmundo Carôso, fala que poesia e letra são coisas totalmente distintas. Concordo plenamente com os dois. Unindo estas duas afirmações, eu, que sempre teimei interpretar e buscar o sentido das letras e poesias, fico meio perdido com "Sampa". Letra ou poesia? Pra mim são as duas coisas. Me lembro de quando ainda não conhecia São Paulo, aos doze anos, e aprendi a tocar “Sampa” no violão. Como, para meus parcos talentos musicais, era uma música difícil de executar, tive que treinar a exaustão até conseguir tocá-la de forma convincente. Com isso acabei por decorar a letra que, já naquela época, me fascinava. É óbvio que tentei interpretá-la e acho que consegui. Não vou me deter nos detalhes e conclusões que um menino de doze anos tirou de tal interpretação, até porque poesia é assim, cada um entende do seu jeito, mas acho que nela contém uma clara mensagem.

Quando conheci Lílian já havia estado em São Paulo duas vezes. Cheguei na cidade de corpo fechado pelo preconceito. Não gostei nada do que vi. Aquele trânsito infernal, as pessoas agitadas correndo de um lado pro outro sem cumprimentar ninguém, o ar carregado pela poluição e os arranha-céus gigantes faziam com que me sentisse um nada no meio da multidão. Definitivamente São Paulo não era a minha praia.

Aí entrou Lílian na minha vida. Com ela comecei a aprender gostar de São Paulo e do povo paulista, a derrubar as barreiras do preconceito e entender o verdadeiro significado daquela cidade, o seu imenso valor. Nossa amizade, que foi se multiplicando pois conheci vários paulistas através dela, me fez olhar aquele povo com outros olhos. Daí em diante passei a ir a São Paulo com mais freqüência e, já de peito aberto, a entender melhor as suas nuances. Uma grande metrópole que, como todas, não pode ser menosprezada.

Um dia, Zé Fábio, um tio meu muito espirituoso, entrou num táxi em Sampa e o motorista perguntou: - Onde o Sr. quer que o leve? Prontamente respondeu: - Onde acontece alguma coisa no coração de Caetano. Por falar no cruzamento da Ipiranga com a São João, vivi lá uma história inusitada. Num dos prédios, em uma das esquinas, fui resolver um problema que tinha com um famigerado cartão de crédito. Pelo menos não era dívida. Peguei uma senha e aguardei ser atendido. Justamente na minha vez o alarme de incêndio disparou. Foi um alvoroço danado. Desci os seis andares pelas escadas feito um louco, em meio a um pânico enorme, pra chegar lá embaixo com o coração disparado botando os bofes pela boca, e descobrir que foi um defeito no sistema. Nunca mais subi lá. Voltei pra casa e deixei o problema pra ser resolvido em Salvador.

Passei a freqüentar o dia-a-dia dos paulistanos. Andar pelas ruas, visitar mercados e feiras, pegar ônibus e metrô, conversar com as pessoas nas ruas e coisas desse tipo, que fazem você realmente conhecer uma cidade e entender seu coração e sua cultura. Numa dessas vi uma coisa que me chamou a atenção, achei até que estava tendo uma alucinação. Não lembro bem o lugar, mas acho que foi na Santa Ifigênia. Um camelô vendendo dentaduras. O cliente chegava, experimentava várias até encontrar a que melhor se adequava na boca. Vocês acreditam nisto? Pois isto é São Paulo. Com o tempo fui mudando de opinião e hoje penso, nunca vi um feio tão bonito quanto Sampa. Todo ser humano deveria ter a oportunidade de mirar aquela cidade à noite dentro de um avião. Esta visão me marcou como uma das imagens mais bonitas que vi na vida.

Por isso retiro tudo que disse e melhor, desdigo se for preciso. Hoje amo São Paulo, amo o seu povo e a sua loucura. Nada me resta senão falar: me desculpa Sampa!