quarta-feira, 6 de agosto de 2008

RETIRO TUDO QUE DISSE - Entendendo a ótica de Caetano

Publicado em 21 de abril de 2007 no marcador Textos

Sampa

(Caetano Veloso)

Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e Av. São João
É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi
Da dura poesia concreta de tuas esquinas
Da deselegância discreta de tuas meninas
Ainda não havia para mim Rita Lee
A tua mais completa tradução
Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e avenida São João

Quando eu te encarei frente a frente e não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes quando não somos mutantes
E foste um difícil começo
Afasto o que não conheço
E quem vem de outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso

Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas
Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaços
Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva
Pan-Américas de Áfricas utópicas, túmulo do samba
Mas possível novo quilombo de Zumbi
E os Novos Baianos passeiam na tua garoa
E novos baianos te podem curtir numa boa

Mário Quintana já dizia: - Não há porque interpretar um poema. O poema já é uma interpretação. Já Antonio Brasileiro, em prefácio para o livro não publicado, Cinema Secreto, de Edmundo Carôso, fala que poesia e letra são coisas totalmente distintas. Concordo plenamente com os dois. Unindo estas duas afirmações, eu, que sempre teimei interpretar e buscar o sentido das letras e poesias, fico meio perdido com "Sampa". Letra ou poesia? Pra mim são as duas coisas. Me lembro de quando ainda não conhecia São Paulo, aos doze anos, e aprendi a tocar “Sampa” no violão. Como, para meus parcos talentos musicais, era uma música difícil de executar, tive que treinar a exaustão até conseguir tocá-la de forma convincente. Com isso acabei por decorar a letra que, já naquela época, me fascinava. É óbvio que tentei interpretá-la e acho que consegui. Não vou me deter nos detalhes e conclusões que um menino de doze anos tirou de tal interpretação, até porque poesia é assim, cada um entende do seu jeito, mas acho que nela contém uma clara mensagem.

Quando conheci Lílian já havia estado em São Paulo duas vezes. Cheguei na cidade de corpo fechado pelo preconceito. Não gostei nada do que vi. Aquele trânsito infernal, as pessoas agitadas correndo de um lado pro outro sem cumprimentar ninguém, o ar carregado pela poluição e os arranha-céus gigantes faziam com que me sentisse um nada no meio da multidão. Definitivamente São Paulo não era a minha praia.

Aí entrou Lílian na minha vida. Com ela comecei a aprender gostar de São Paulo e do povo paulista, a derrubar as barreiras do preconceito e entender o verdadeiro significado daquela cidade, o seu imenso valor. Nossa amizade, que foi se multiplicando pois conheci vários paulistas através dela, me fez olhar aquele povo com outros olhos. Daí em diante passei a ir a São Paulo com mais freqüência e, já de peito aberto, a entender melhor as suas nuances. Uma grande metrópole que, como todas, não pode ser menosprezada.

Um dia, Zé Fábio, um tio meu muito espirituoso, entrou num táxi em Sampa e o motorista perguntou: - Onde o Sr. quer que o leve? Prontamente respondeu: - Onde acontece alguma coisa no coração de Caetano. Por falar no cruzamento da Ipiranga com a São João, vivi lá uma história inusitada. Num dos prédios, em uma das esquinas, fui resolver um problema que tinha com um famigerado cartão de crédito. Pelo menos não era dívida. Peguei uma senha e aguardei ser atendido. Justamente na minha vez o alarme de incêndio disparou. Foi um alvoroço danado. Desci os seis andares pelas escadas feito um louco, em meio a um pânico enorme, pra chegar lá embaixo com o coração disparado botando os bofes pela boca, e descobrir que foi um defeito no sistema. Nunca mais subi lá. Voltei pra casa e deixei o problema pra ser resolvido em Salvador.

Passei a freqüentar o dia-a-dia dos paulistanos. Andar pelas ruas, visitar mercados e feiras, pegar ônibus e metrô, conversar com as pessoas nas ruas e coisas desse tipo, que fazem você realmente conhecer uma cidade e entender seu coração e sua cultura. Numa dessas vi uma coisa que me chamou a atenção, achei até que estava tendo uma alucinação. Não lembro bem o lugar, mas acho que foi na Santa Ifigênia. Um camelô vendendo dentaduras. O cliente chegava, experimentava várias até encontrar a que melhor se adequava na boca. Vocês acreditam nisto? Pois isto é São Paulo. Com o tempo fui mudando de opinião e hoje penso, nunca vi um feio tão bonito quanto Sampa. Todo ser humano deveria ter a oportunidade de mirar aquela cidade à noite dentro de um avião. Esta visão me marcou como uma das imagens mais bonitas que vi na vida.

Por isso retiro tudo que disse e melhor, desdigo se for preciso. Hoje amo São Paulo, amo o seu povo e a sua loucura. Nada me resta senão falar: me desculpa Sampa!

9 comentários:

Lorena disse...

Eu tinha escrito um comentário tão legal, mas o blogger não me deixou postar... ¬¬

O que eu queria dizer é: é mto legal perceber o nascimento desse seu amor. Como a vida dá voltas, né? É como aqueles amores que nascem na gente, pela pessoa que menos esperamos. Tudo que nos desgostava antes, parece estranhamente perfeito quando amamos...

E eu que já amo essa música, sempre tive uma quedinha por Sampa (a cidade), adorei conhecer sua história de amor! =)

beijos!

Éverton Vidal Azevedo disse...

Também já havia lido esse texto antes, e foi bom té-lo lido outra vez. Se nao me engano eu até comentei.

Estou de volta com o blog!

Éverton Vidal Azevedo disse...

Aproveitando ... Que livro lindo é o de Nélio Rosa! E que cd fantástico é o cd que acompanha! Pretendo comentá-lo muito em breve.

Éverton Vidal Azevedo disse...

A propósito, os "Carösos" da ficha técnica sao seus irmaos nao é?

Adriano Caroso disse...

Éverton,

Que bom ter você de volta. Já estava sentindo uma falta danada. Os "Carôsos" são meus irmãos sim.

Grande abraço

Inté!

Adriano Caroso disse...

Lorena,

A sua presença neste espaço me enche de orgulho. Fico até achando que posso continuar..Vou comprar o livro de Clarice logo. Você leu os posts da Ilha do Pirata?

Beijão

Jacinta Dantas disse...

É Adriano,
lendo o seu RETIRO TUDO QUE DISSE - chego à conclusão de que é o olhar que faz o lugar. Nosso olhar traz de volta o reflexo do que queremos ver (o que já está pré-concebido). Não conheço São Paulo, mas agora, com o seu olhar, passo a pensar a cidade de outro jeito.
Beijos e bom domingo
Jacinta

Humana disse...

Olá meu querido!
Nunca fui ao Brasil como já te disse mas se viajasse para aí, visitaria certamente S. Paulo e queria visitá-la contigo.
Adoro-te por vários motivos que já te enumerei e um deles é essa tua maneira tão autêntica de ser e de voltar atrás quando vês que tinhas uma ideia errada e pré-concebida sobre algo.
Adoro-te amigo!

P.S.Quero muito pôr aquele selo no blog meu lindo.Temos que combinar uma noite destas para me ajudares.
00351964623487.

Amor amor disse...

Adrianinho, tá certo que São Paulo é indiscutivelmente...interessante (hihihi), mas que a top model Lilian te fez enxergar tudo mais azul, aaaahhh, fez, sim! ;oP
Morri de rir com a história do alarme falso de incêndio, ótimo, hahahahahaha!!!
Olha, eu não tenho preconceito contra a cidade, que é absurdamente rica culturalmente, nem contra os paulistas (apesar de ter "reação alérgica" a sotaques de algumas regiões paulistas), mas acho que eles poderiam ser menos preconceituosos com o resto dos brasileiros. É isso que me incomoda. Eu até gostaria de ir lá mais vezes, se eu tivesse máscara de oxigênio. ;o>
Mas, quando fui, não tenho tanta coisa pra reclamar, vi muits coisa legal mesmo!!!

Beijocas doces cristalizadas!!! ;oP