quinta-feira, 21 de agosto de 2008

ILHA DO PIRATA - A Foto Reveladora - II

Publicado em 12 de abril de 2007 na marcador textos

O Triozinho das Frutas. Lavagem do Bonfim de 1993

Quando você tá na pior é que descobre quem são os verdadeiros amigos. Por cima é tudo uma festa. Um monte de gente te rodeando, se dizendo amigo do peito e, muitas vezes até, querendo te ver pelas costas. Agora, quando se estar por baixo, só os amigos leais, aqueles que te amam de verdade, vêm ao seu socorro. Com Ray foi assim. Já tínhamos quase dois anos de convivência, que já tinha se expandido do âmbito profissional para o pessoal, quando, após uma série de problemas pessoais com Brown, fui sumariamente demitido da Timbalada. Não houve nenhum tipo de aviso, nada que me fizesse pensar que estaria por um fio. Foi pá bufo: -Você tá fora e pronto. O pior, é que ainda conciliava os dois trabalhos e continuava ensinando. Como a Timbalada vinha num processo ascendente e tava difícil de me dividir, tive de optar por um deles. Pesei os prós e os contras dos dois e, depois de uma conversa com Cícero que me garantiu estar solidificado lá dentro, e que tinha muitos planos futuros para mim, no início de outubro de 94, pedi demissão da escola. Cícero não teve culpa de nada, foi pego de surpresa tanto quanto eu. Enquanto Brown falava comigo, sentia que, assim como eu, o chão lhe faltava nos pés.

Passei uma perrengue danada em quase dois anos desempregado e a maioria dos meus “amigos” da época, virou as costas pra mim. Fui demitido no dia 28 de outubro, aniversário do meu grande amigo Zé Filho, que mais tarde viria a ser também meu compadre, já que batizei a sua primogênita Jade, morador de Serrinha interior da Bahia, onde morei quatro anos da minha infância. Após a notícia, fiquei tão desnorteado que não consegui sequer entrar mais na minha sala. Aquela altura, depois do terceiro disco já havíamos alugado uma casa no Bairro nobre da Pituba e montado um puta escritório. Tinha sala pra todo mundo, inclusive pra mim. Desci as escadas, entrei no carro e fui para casa. Juntei umas mudas de roupa e, sem avisar a ninguém peguei a estrada para ver meu amigo no seu aniversário. Naquele dia eu almocei na casa de Ray e recebi a notícia assim que voltei pro escritório. Era uma sexta-feira e não tinha falado com ele mais. Quando já estava 10km estrada adentro ele ligou no meu celular. Todo animado queria saber qual o programa da noite. Sentiu na minha voz o meu estado de espírito e perguntou o que era. Quando contei a ele, como tudo mundo, ficou abismado. Me disse que se eu desse meia volta para pegá-lo, viajaria comigo. Aquela atitude mostrou o caráter do cara que nestes tempos já conhecia bem. Peguei o primeiro retorno. Foi uma bengala salvadora sua companhia em tal viagem. Não sei como seria vencer sozinho os quase 200km que separam Salvador de Serrinha.

Foi um ato simples que me chamou atenção pra ele. Embora já simpatizasse muito com Ray ainda não tinha estreitado maiores relações. Na lavagem do Bonfim de 93, portanto pouco tempo depois de nos conhecermos, eu estava exausto de dias e dias e noites viradas, trabalhando nos preparativos para a saída da Timbalada. Naquela época ainda eram permitos trios elétricos seguindo o cortejo. Lembro que no dia do desfile, viramos de quarta pra quinta. Eram cinco horas da manhã quando, tomado pelo cansaço, adormeci no chão da varanda de D. Madalena, sem colchão, travesseiro e nada. Só o corpo estendido na cerâmica fria. Sonhava em sono profundo, quando às seis, Gilson, irmão de Brown, chutou levemente o meu pé: -Adriano, acorda cara, tá na hora de irmos preparar a saída. Acordei de sobressalto e fomos nós. Eu dirigindo a Kombi repleta de gente e instrumentos, não sei como coube tudo aquilo dentro dela. Quando o bloco saiu já passava das dez. Dobramos o Mercado Modelo por volta do meio-dia. Aí eu não estava mais aguentando o peso do corpo sobre as pernas e entrei na boléia do caminhãozinho que servia de trio, para esticá-las. Não sei quanto tempo fiquei, sei que não foi muito. Logo, logo, Ziriguidum, um colega de trabalho, chamou-me pelo rádio, algum pepino aguardava-me.

Por falar no caminhãozinho, foi um show o que Ray fez com ele. Com os poucos recursos que dispunhámos, transformou um mondrongo, num dos destaques daquele cortejo. Pena que meu compadre, embora mestre na manipulção dos softwares da sua área, Corel, Photoshop e 3D Stúdio, é um tanto avesso ao mundo informático e não mantém atualizado o seu site que, até hoje, está da forma como foi criado quando eu ainda trabalhava com ele, em 2001. Mas, uma visita por lá, deixará claro pra qualquer um o talento deste artista que vem pontuando a música baiana com a plástica do seu trabalho.(Vale salientar que ele tomou vergonha na cara e atualizou o seu site. Merece uma visita)

O cortejo seguiu Cidade Baixa adentro e o trio manobrou para voltar no Largo de Roma. Não sei precisar bem mas devia faltar 1km dos 8km que, aproximadamente, tem o trajeto. Despachados caminhão e equipamentos, músicos e nós da técnica, seguimos a pé até escadaria da Igreja do Bonfim. A noite já havia caído há tempos.

Aos pés da escadaria, depois da benção do Senhor do Bonfim, desfizemos o desfile, embarcamos os músicos e equipamentos no ônibus e caminhão que já esperavam por perto, com destino a seus lares e cases*. Fomos então pra casa de Ivana Souto, amiga de Brown, que veio a ser durante um bom tempo empresária da carreira solo dele mais tarde. Ela morava ali mesmo no Bonfim e em sua residência, nos esperava uma feijoada e muita cerveja gelada. Não consigo lembrar se Ray foi com a gente ou se mesmo, ficou até o fim do cortejo. Se bem o conheço, acho que deve ter picado a mula muito antes dali. Preferi não perguntar a ele, não tenho compromisso com as minúcias dos detalhes mas com a verdade dos fatos. Cabeça e bucho cheios, de álcool e feijão respectivamente, fui dormir na Kombi até as outras pessoas que retornariam comigo, se refestelarem na festa. Foi a única vez na vida que participei de uma lavagem do Bonfim. De lá pra cá, mesmo estando em Salvador, vou sempre pro lado oposto da cidade.

Dias depois, com um atraso significativo e depois de muita reclamação, já que como falei antes a maré não andava pra peixe, Ray foi no escritório receber o resto do pagamento pelo seu trabalho no trio. Reclamou bastante por ter sido um dos últimos a receber. É sempre assim, e nisso ele estava coberto de razão, os de casa vão sendo protelados em benefício dos estranhos, estes cortam o crédito primeiro. Acontece que os de casa também têm contas a pagar e, no caso dele, uma legião de operários que mais tarde vim a conhecer bem todos, esperavam também pelos seus pagamentos com suas contas a pagar, numa cadeia de dívidas e compromissos interminável.

Bolsos abastecidos, ânimos arrefecidos, Ray sacou do bolso um presente pra mim. Aquele gesto nunca vai sair da minha cabeça, marcou a minha vida. Era uma foto que, não tenho a mínima idéia de que momento, ele tirou enquanto eu estava na boléia do caminhãozinho. Minha expressão embora cansada estava muito bôa. Talvez ele não saiba o quanto aquele presente significou pra mim. Nada de valor material teria me tocado tanto. Até hoje não me perdôo por não tê-la mais comigo. Se perdeu nas minhas intermináveis mudanças de casa em casa por Salvador.

*Cases - Estojo onde se guardam instrumentos ou equipamentos. A pronúncia é algo como queises.

4 comentários:

Éverton Vidal Azevedo disse...

É interessante como as amizades nascem devagar, quando a gente percebe a amizade está feita e sendo consolidada. Coisas pequenas a alimentam, uma palavra, um "vou contigo", uma foto tirada do nada, um livro com dois cds enviados pro outro lado do mundo... E assim os laços se fortalecem. Sem muita expectativa, chegam onde se deve chegar.

Muito bom seu texto Adriano.
Abraço.

Éverton Vidal Azevedo disse...

Por sinal, já fiz algumas visitas ao site do Ray Vianna. O cara é simplesmente fera.

Camilla Tebet disse...

Pois é, dizem que amigos são famílias que escolhemos. E é assim mesmo, não é? Surpresas boas e ruins. talvez por isso os tombos nos ensine tanto, pois com eles ficamos sabendo com quem podemos contar.
Abraços pra vc

Leandro Neres disse...

Que bacana esta história, Adriano!
Estou achando muito legal a forma como fala de amizade, companheirismo, luta, começo...
Abração
Vou continuar lendo... rs