sexta-feira, 11 de julho de 2008

QUANDO O DESTINO QUER...

Publicado em dois capítulos em Setembro e Dezembro de 2007 no marcador crônicas

Quando Evandro entrou em casa logo percebeu que havia algo diferente. Já fazia muitos anos que ele morava sozinho e conhecia cada canto do lugar, a milimétrica posição de cada objeto, nada escapava ao rigoroso crivo do seu jeito sistemático de ser. Extremamente organizado notou imediatamente que o telefone estava um pouco mais a direita do que de costume. Quando foi conferir, erá óbvio que alguem o afastara para dar passagem à mão e alcançar o fundo da mesinha. Logo viu que o fio estava desconectado da tomada. Como poderia alguém ter feito aquilo. Não havia nem um sinal de arrombamento. A porta e fechadura estavam intactos. Ninguém possuía uma cópia da chave, nem poderia, aquele era o seu mundo, seu porto seguro, não havia como compartilhar com outrem. Ficou um pouco amedrontado. Será que havia mais alguém em casa? O que estaria fazendo ali? Seria um assalto? Uma vingança? Os pensamentos fluíram desordenadamente e uma sensação de pânico invadiu o seu interior.

Naquele momento, ele lembrou os acontecimentos da noite anterior. Fizera algo horrível, desumano e talvez estivesse agora pagando por sua conduta deplorável. Atropelou um mendigo e se negou a dar socorro. Chegou a parar o carro, viu o corpo agonizante e ensanguentado do homem no chão. Quando imaginou a sujeira que seria no seu estofamento novinho, olhou ao redor e, àquela hora da madrugada, não havia uma viva testemunha do acontecido. Contudo, tal atitude lhe tirou a paz. Não houve um segundo sequer desde o acidente, que sua mente não ruminasse um remorso sem fim. Começou a ficar assustado. Teria alguma relação com estes fatos da noite anterior?

Ofegante, começou a examinar cada detalhe e percebeu outros claros sinais de que alguém esteve ou estava ali. Apurou a audição, nem um ruído. Restava o andar superior onde ficava seu quarto, o banheiro e a biblioteca, o lugar mais preservado da casa, pelo qual ele seria capaz de morrer. Teve medo de subir os degraus, nem podia imaginar o que o esperava. Sem outra alternativa, começou a subir. A cada degrau seu coração acelerava. Tinha a impressão que saltaria do peito. Primeiro o banheiro. Nada além da torneira que pingava lentamente. Devia ter consertado o vazamento, pensou. No quarto outro sinal. O telefone da cabeceira também havia sido desligado. De resto tudo normal. A essa altura, o coração parecia furar-lhe o peitoral, tamanha a força e velocidade dos batimentos. Uma dor aguda começou a tomar-lhe o braço esquerdo projetando-se levemente para o peito. A respiração ficou mais difícil, faltava-lhe ar. Com as poucas forças que restavam, arrastou-se até a biblioteca. Ao entrar, olhando as estantes vazias, nenhum livro sequer, o que acontecera? Quem roubaria um monte de livros velhos? Para ele, era sua maior fortuna. Foi aí que a dor ficou insuportável, como se alguém batesse em seu peito com muita força. Perdeu os sentidos e desmaiou.

Quando Evandro acordou, a visão que teve foi assustadora. Seu corpo desacordado no chão de uma biblioteca intacta. Seus livros valiosos jaziam na estante, criteriosamente arrumados como sempre. Estaria tendo uma alucinação. Há poucos instantes as prateleiras estavam vazias. Como isto poderia acontecer? Lembrou da sala e correu para verificar. Ficou surpreso ao perceber que não andava e sim flutuava lentamente. Um forte terror invadiu sua mente e ele teve por um momento nova ânsia de desmaio. Na sala, tudo no seu devido lugar. O fio do telefone conectado, o aparelho na devida posição. O que estaria acontecendo? Voltou à biblioteca e ficou longos minutos contemplando o seu corpo no chão sem entender o que estava acontecendo.

Foi aí que lembrou do acidente. Mais uma vez o remorso o corroeu. Rapidamente saiu flutuando até local e mais surpreso ainda ficou ao ver o mendigo são e salvo, sentado na calçada comendo um pão velho provavelmente dado por algum transeunte. De repente o inesperado. O mendigo levanta-se, visivelmente bêbado e atravessa a rua rapidamente. Um carro, em alta velocidade o atropela jogando-lhe a alguns metros de distância. O mendigo agonizava e sangrava muito. O carro parou e seu motorista desceu. Como podia? Era ele. Assustado olhou em volta como se procurasse testemunhas àquela hora da madrugada. Após alguns segundos de dúvida, pegou o mendigo colocou no banco de trás e o levou a unidade de emergência mais próxima.

Lá chegando imaginou como a vida era injusta, como o mundo era cruel. Como podia alguém ser tratado num local como aquele? O que estava sendo feito com os milhões que o governo arrecadava com a previdência? Bem, ele não ia consertar o mundo. Estava mesmo preocupado em saber o estado do pedinte. Foi aí que veio o médico e deu a notícia. O mendigo não resistira aos ferimentos e acabara de vir a óbito. Evandro empalideceu. Uma dor aguda começou a tomar-lhe o braço esquerdo projetando-se levemente para o peito. De repente a dor ficou insuportável, como se alguém batesse em seu peito com muita força. Perdeu os sentidos e desmaiou. Imediatamente o médico acionou os enfermeiros e o removeram para uma unidade de tratamento intensivo. Muitos aparelhos foram ligados. Deram vários choques em seu peito, uma agitação insana tomou conta da sala. o aparelho que monitorava seus batimentos mudou o gráfico na tela e o ritmo dos sinais. Não entendia nada, mas devia ser uma coisa boa a tirar pela mudança positiva dos semblantes da equipe. O médico então retirou a máscara e falou sorrindo: - Ainda não foi desta vez meu amigo! Só então Evandro entendeu que estava morto.

Um comentário:

Éverton Vidal Azevedo disse...

Muito louco esse seu texto, nao sei nem o que dizer, fiquei a pensar no que acontece logo após nossa partida desse mundo e no quanto é importante tentar fazer as coisas certas.

Grande abraço.